Pois é: bonecas com órgãos genitais são um dos materiais mais eficientes utilizados na prevenção da violência sexual contra crianças.

O fascínio pelas bonecas/bonecos acompanha o homem há milênios e reflete a história da humanidade com sua arte, magia, beleza, fantasia e religiosidade. Bonecas são artefatos presentes em todas as civilizações: embora sua origem tenha se perdido no tempo, sabe-se que há 40 mil anos, na África e na Ásia, também foram encontradas as primeiras estatuetas de barro feitas para rituais. Sendo utilizadas como talismã, oferendas aos deuses e deusas, suvenires e brinquedos, estão extremamente ligadas à nossa historia social, cultural e econômica, afinal, as bonecas enfatizam os valores de cada grupo social, bem como o padrão de beleza, vestuário, conceito de sexualidade e as subjetividades relacionadas ao corpo.
No começo de sua história, elas não serviam para brincar e tinham, quase sempre, função religiosa ou de contemplação, funcionando também como amuletos. Em cavernas pré-históricas de diversas partes do mundo, foram encontradas pequenas bonecas esculpidas em pedra. Os cientistas as chamaram de Vênus (deusa grega que simboliza a fertilidade), pois os estudos revelaram que essas bonecas também eram utilizadas em rituais que de fertilidade e, a maioria delas representavam a figura feminina. Originalmente, as crianças nem sequer tinham o direito de se aproximar desses pequenos totens, que se acreditava terem poder de vida e morte sobre as pessoas e eram monopólio de donos bem mais exclusivistas: sacerdotes, feiticeiros e curandeiros.
Historiadores que realizaram pesquisas sobre esse tema consideram que a transição das bonecas como ídolos para brinquedos ocorreu no Egito, há 5 mil anos. Foram achadas em túmulos egípcios de crianças bonecas esculpidas em pedaços de madeira. Os bonecos e bonecas nessa época não representavam crianças, eram miniaturas de adultos tendo os sexos bem definidos. Uma criança egípcia não podia brincar com um boneco que representasse um ídolo, e sim com um boneco que fosse um servo.
Foram encontrados bonecos em alguns túmulos de crianças, sugerindo que, possivelmente, os objetos eram também brinquedos delas. Alguns deles eram fabricados pelas próprias crianças com madeira, argila, pedra, tecido e barbante e, pasmem, tinham órgãos genitais.
Alguns estudiosos afirmam que os bonecos na Grécia Antiga, mais especificamente em Atenas, tinham quase o mesmo uso atual. As crianças atenienses os utilizavam como brinquedos. Outra função que tinham em Atenas, era a prática simbólica que a boneca exercia durante o casamento. As mulheres atenienses costumavam consagrar suas bonecas à deusa Afrodite, que representava o amor e a beleza (tal prática representava uma espécie de pedido de sorte no amor). As jovens costumavam oferecê-las às deusas na época de seu casamento, na esperança de ter filhos. Abaixo, bonecas gregas:
Na Idade Média, por exemplo, esse objeto foi tão marcante que a sociedade medieval resolveu condenar as bonecas à mesma fogueira onde ardiam as bruxas. Bom, previsível né? Nessa época, as bonecas eram vistas pela Igreja Católica como objetos de feitiçaria e, junto com suas donas, eram também queimadas nas fogueiras. Carregadas do simbolismo da mitologia pagã greco-romana, elas praticamente desapareceram do mapa.
Com produções artesanais mais tímidas, utilizadas para presentear meninas e as incentivar ao aprendizado das tarefas domésticas e maternais, as bonecas retornam após a Idade Média. Com materiais mais elaborados e variedade de roupas, é na Revolução Industrial que as bonecas voltam ao reino infantil. Educadores e filósofos orientavam pais a permitir que as meninas brincassem com elas e o crescimento da classe média abriu mercado para a produção em larga escala.
É muito curioso observarmos como a representação do corpo humano se transforma de acordo com os valores de cada época. Os conceitos relacionados à sexualidade e ao conceito de infância imprimiram características únicas nesses objetos, seja pela estética, acessórios, roupas, matéria-prima e presença ou ausência dos órgãos genitais. É fato que, após a Idade Média, não só as bonecas desapareceram, mas também seus órgãos genitais, presentes nas civilizações egípcias e da Grécia Clássica.
Hoje, as bonecas ainda são brinquedos socialmente designados às meninas. Para driblar essa questão, a indústria produz ‘bonecos’ para os meninos, que representam super-heróis, personagens de filmes e figuras cujas funções representam ações consideradas tipicamente masculinas, usando a força e o poder como valores fundamentais da personalidade desses É interessante percebermos que, embora os meninos brinquem com representações do corpo humano, eles são chamados de ‘bonecos’, no gênero masculino. Mas se os meninos brincarem com uma boneca bebê, representando o cuidado, mesmo que essa boneca bebê seja do sexo masculino, fala-se que este menino está brincando de “boneca’, não é mesmo? Assim, percebemos que, no Brasil, o gênero das palavras ‘boneca’ e ‘boneco’, é flexionado de acordo com sua função, ou à utilização que a eles é atribuída. Cuidado, tarefas domésticas, carinho, sensibilidade, compras, são as referências sociais femininas vigentes. Já a força, controle, poder, agressividade, luta, são referências sociais masculinas.
O pudor, as vestimentas, as regras sociais na área da sexualidade após a Idade Média, reforçada posteriormente pela era Vitoriana, nos trouxeram às bonecas e bonecos de hoje. A maioria não possui órgãos genitais e, quando o possuem, são tema de questões polêmicas sobre os malefícios de uma criança ter contato com a representação dos órgãos genitais.
Pessoas levadas pelo senso comum entram em pânico com a ideia de bonecas com órgãos genitais. Imaginam que esse tipo de brinquedo pode erotizar as crianças e trazer maléfícios para o seu desenvolvimento.
Segura na minha mão e vem comigo desconstruir essa ideia. São 15 anos trabalhando na área de prevenção de violência sexual e te garanto: o que tá escrito aqui embaixo tem fundamentação científica e se reafirma todos os dias no meu cotidiano. Os projetos de prevenção de abuso sexual só utilizam bonecas anatomicamente corretas (com órgãos genitais) nas atividades com as crianças.
Vamos organizar as ideias sobre isso, então? Aqui estão 9 argumentos para você entender como bonecas com genitais podem trazer um aprendizado positivo sobre o corpo e proteger as crianças da violência sexual:
1- Não, as crianças não são muito novas para saberem os nomes apropriados para as partes do corpo e as diferenças sexuais anatômicas. Conhecimento é poder e, mais do que isso, proteção contra a violência sexual.
2- Estudos comprovam que crianças que sabem nomear as partes íntimas do corpo - isso mesmo, vulva, pênis, pepeca ou pingulim, não importa se pelo apelido ou pelo nome formal - têm uma auto-imagem mais positiva sobre o corpo e conseguem se comunicar e pedir ajuda com mais facilidade. Sim, isso faz com que elas fiquem menos vulneráveis à violência sexual.
3- O que erotiza a criança não é um boneco com pênis. A erotização é um fenômeno ligado à sociedade do consumo, aos valores machistas que objetificam meninas e mulheres e também é resultado da própria violência sexual. Não desvie o olhar para a sua responsabilidade de olhar a violência sexual onde ela está. Vou dar uma dica: não é no museu, nem na boneca com pênis. Está dentro de casa, é cometida por pessoas conhecidas e atinge 2 a cada 5 crianças.
4- A criança ter informações de qualidade sobre anatomia não tira a inocência dela não! Pelo contrário, a tira da ignorância - e todas/todos queremos crianças bem informadas, com ferramentas para pedir ajuda e perceber uma situação de abuso sexual, não é?
5- Partes do corpo não são eróticas em si, é a percepção adulta delas que as tornam erotizadas. Para as crianças, as partes do corpo são partes do corpo.
6- A verdade é que bonecos assexuados, ou seja, sem informação fidedigna sobre a anatomia entre as pernas são, no mínimo, estranhos. Se pensarmos que os modelos de brinquedo infantil imprimem no boneco todas as partes do corpo menos os órgãos genitais, isso já é uma forma de estabelecer uma grande estranheza e reforçar tabus relacionados à essas partes do corpo.
7- A mensagem principal de um boneco assexuado (que não tem órgãos genitais) é que é errado reconhecermos todas as partes do corpo.
8- Perguntas curiosas das crianças sobre o seu corpo e o corpo do outro, além de ensinamentos sobre toques inapropriados e abusivos em partes íntímas poderiam ser facilmente trabalhados se os bonecos com os quais brincam fossem anatomicamente corretos.
9- O uso de bonecos com órgãos genitais pode trazer grandes benefícios quando orientados por um adulto responsável, num processo de educação sexual e para ensinar o que são partes íntimas, nas quais ninguém pode tocar fora do contexto de saúde e higiene.
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